sábado, 5 de maio de 2012

O que os olhos não vêem


"Boa noite, me chamo Matthias e serei o garçom-guia de vocês. Por favor, todos com a mão esquerda no ombro da pessoa da frente e o copo na direita. Cuidado, há uma porta logo aqui e uma cortina. Não se preocupem, não há degraus até a mesa".

Quando a porta se fechou atrás de nós, entramos em um mundo de sons, gostos e texturas. Mas sem cores.

"Six people!", anunciava Matthias a cada passo, talvez para evitar que outro garçom calculasse mal a 'ultrapassagem'. Tipo aqueles caminhões que estampam na lataria 'veículo longo'.

Depois de uns 30 ou 40 passsos, paramos: "A primeira pessoa vai até o final da mesa, para a direita. É a terceira cadeira. Há uma parede ao lado".

Matthias acomodou cada um de nós e prosseguiu com as instruções: "Cada um tem dois garfos à esquerda, uma faca à direita. Na frente há um prato com manteigas. Avise a todos na mesa onde vc está colocando seu copo. O mais seguro é que ele fique à sua direita".

Onoir, em Montreal, é um daqueles restaurantes em que vc come totalmente no escuro. E quando eu digo escuro, quero dizer que não dá nem para desconfiar um movimento de um vulto à sua frente. Parte da renda é destinada à associações para pessoas com deficiência visual, de onde vem também a mão de obra usada no salão, já que todos garçons são cegos ou de baixa visão.

Na salinha onde fomos recepcionados por Matthias, escolhemos o cardápio da noite. Ou melhor, "desescolhemos". Optamos, os seis, pela "surpresa" na entrada, no prato principal e na sobremesa. Mas avisei que detesto pimentão.

Os primeiros minutos na escuridão total são de uma agonia indescritível. Seus olhos abertos e o escuro na frente. Sim, um dos objetivos do Onoir é fazer pessoas "videntes" passarem pela experiência de vida de cegos. Além de querer estimular outros sentidos nossos, já que estamos privados da visão.

E se estimula! Os decibéis se elevam no salão. Difícil encaixar uma conversa sem ver o interlocutor. Até nos acostumarmos com a nova dinâmica, nossa voz devia ser ouvida até do outro lado da agitada rue Ste Catherine, onde fica o restaurante.

"Matthiiiiiaaaaaas!", grita a Tati, seguindo à risca a instrução de "call me out loud if you need something".

"Ele é cego, não surdo. Pra que esse berro?", provoca uma voz da mesa, para gargalhada geral, logo no instante em que o garçon se materializa para nos atender.

O pão - assim como os demais pratos - foram sempre entregues por cima do nosso ombro esquerdo. A troca das taças de vinho vazias por cheias exige alguma habilidade (fomos num Shiraz australiano 2009 ótimo, depois de brindarmos com um espumante húngaro como aperitivo).

Comemos tartar de carne achando que era ceviche na entrada.

"Many people said this tonight", diz Matthias, para não nos desanimar muito afinal, era só o começo.

O purê de maçã com aipo e cenoura al dente veio acompanhado de um nugget de pato.

"No meu não veio nugget nenhum!", insistia o Rafa durante prato principal, mesmo antes de Matthias revelar que o menu do chef Alejo N consistia em um porco 'deep fried' com purê de cenoura com molho de maça. Ah, tá.

O doce com folhas de hortelã foi a única unanimidade da noite.

Alguns usaram as mãos para comer em determinados momentos. Outros deram garfadas no vazio. Teve gente se lambuzando de manteiga, e gente desesperada quando a faca caiu no chão.

A comida não é o forte do Onoir, e sim a experiência. A sensação (confortante) que o homem é capaz de se adaptar a tudo. A tensão no começo do breu se transformou em organização (para manobrar pratos e talheres). Ao fim da noite, parecia que estávamos vendo o que acontecia a nosso redor.

"Não acendemos jamais a luz. O que importa aqui é o que vc leva na sua mente", despede-se Matthias.

Comer: Onoir Montreal (1631, Ste Catherine West, Montreal / info@onoir.com)